domingo, 11 de junho de 2017

NOBREZA AFRICANA CONTRABANDEAVA ESCRAVOS PARA O BRASIL


Retrato realizado pelo pintor holandês Albert Eckhout de D.Miguel de Castro, nobre do Reino do Kongo, durante uma viagem comercial à colônia portuguesa do Brasil. O quadro é do século 17 e pertence ao acervo do Museu Nacional da Dinamarca.


A informação é surpreendente. Praticamente inédita. Para os mais empedernidamente crentes no primitivismo selvagem dos africanos nos idos do século 17, a  notícia é mesmo i-na-cre-di-tá-vel. Mas é fato. Modéstia à parte um achado historiográfico impressionante.Corro atrás de evidências sobre este mistério há muitos anos, depois de ter lido em algum lugar, num texto de Câmara Cascudo, se não me engano, uma informação muito vaga sobre uma mítica embaixada que a rainha Nzinga Mbandi (Jinga) teria enviado ao Brasil, á época do domínio holandês.

A ausência total de qualquer outra referencia sobre o assunto – apenas ventilado por Câmara Cascudo num daqueles seus livros de folclore, quase como se fosse uma lenda colonial – sempre me intrigou, apaixonou. Pensei na época, instigado: E se fosse verdade? Quantos paradigmas seriam quebrados acerca das relações entre africanos e europeus no âmbito das conflituosas relações intercontinentais no século 17? Pois bem amigos, eu,  pesquisador leigo, bisbilhoteiro profissional, consegui provar com dados absolutamente cabais e inquestionáveis o fato perseguido: Na década de 1640, em pleno domínio holandês no Brasil e em Angola, uma embaixada africana viajou até Recife sim. Veio comandada por um nobre africano e trouxe presentes (ouro, marfim, escravos, etc.) para o governador geral do Brasil holandês Maurício de Nassau.

Nem ouse duvidar.Tenho para comprovar a vocês esta sensacional descoberta nada mais nada menos que o retrato fiel do próprio embaixador angolano e de dois de seus servos com amostras de presentes trazidos para o dignatário holandês. É tudo verdade, gente! Está atestado! Mesmo que você relute e não queira, vai ter que acreditar.  Albert Eckhout juntamente com Franz Post, foi um artistas holandeses que, oficialmente fizeram parte ativa do grupo trazido por Maurício de Nassau no século 17, para fazer o registro artístico e documental da ocupação holandesa no Brasil no período entre1640/1648). Na crônica sobre este período, chama a atenção a hipótese de ter havido uma grande viagem diplomática mandada ao Brasil, por iniciativa da Rainha Nzinga Mbandi doreino do Ndongo-Matamba a pedido de seu irmão o Rei do Kongo na época Nkanga a Lukeni (D. Garcia II) com o objetivo de negociar com a Companhia das Índias Orientaise Ocidentais.

A inusitada viagem ocorrida, segundo as poucas fontes existentes em fevereiro de 1642 (provavelmente a única integrada e comandada por africanos registrada na história do colonialismo no período)  foi bancada pela coroa holandesa que segundo pouquíssimos relatos, enviou especialmente da Europa um navio denominado ‘ As armas de Dortrecht’ até o porto de Luanda e daí até Recife para depois seguir para Amsterdam,tendo como chefe da missão aquele que seria o tio dos dois soberanos africanos, o Conde de Nsoyo.
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O reino do Nsoyo sempre fora associado ao do Kongo por laços de parentesco (geralmente governado por um tio do Rei do Kongo), com curtos períodos de cisão, por conta das regras de sucessão e divisão do poder e do território nos reinos da região, fundadas em laços de família (‘kandas’) com origens ancestrais remontando a fundação do reino hegemônico do Kongo por volta do ano 1300/1400). Considerando-se o curto espaço de oito anos que este tipo de flagrante contou para que pudesse ser realizado (o tempo em que os holandeses tiveram acesso e controle da situação nestas colônias é historicamente bem restrito) é instigante a possibilidade deste D. Miguel de Castro – que um documento da época o designa como ‘rico comerciante’ – cuidadosamente vestido como um nobre holandês, chefe reconhecido desta, com toda certeza, rara missão ao Brasil, tenha sido na verdade alguém ligado diretamente à Nzinga Mbandi , quem sabe o próprio Conde de Nsoyo, seu tio. Além deste existem outros retratos também realizados pelo mesmo Eckhout, por ocasião da mesma viagem, com as figuras descritas como sendo dois ‘servos’ de D. Miguel de Castro, do mesmo modo vestidos com roupas holandesas, um portando um cesto decorado que deve conter ouro e o outro com uma enorme peça de marfim.


Século 17- Servos de D. Miguel de Castro pintados também por Albert Eckhout.

Curiosa também é a informação – algo improvável a nosso ver – pelo menos segundo uma das fontes consultadas – de que a roupa holandesa dos personagens teria sido vestida na ocasião (ou mesmo aplicada na imagem posteriormente) apenas para compor uma peça de propaganda, com finalidades aculturativas) Na pesquisa suplementar que ora realizo sobre os instigantes incidentes desta viagem – com a providencial ajuda do amigo angolano Aristóteles Kandimba, que reside, coincidentemente em  Amsterdam, Holanda a poucos minutos da cidade portuária de Dortrecht, origem provável do navio que transportou o embaixador africano, o mais surpreendente é a quase total ausência de dados ou documentos sobre tão inusitado fato histórico além dos que eu mesmo consegui encontrar.


As razões inacreditáveis deste formidável incidente histórico ter ficado oculto e obscurecido, quase desconhecido por tantos séculos é quase inexplicável. No caso da historiografia brasileira, tão pouco ciosa – quase displicente – diante das estreitas relações entre a história angolana e a brasileira isto é até explicável, mas o que dizer da historiografia  mundial. Pode ser que existam, mas nem mesmo em John Tornthon, emérito e arguto historiador da universidade da Pensylvania especializado neste período histórico empolgante, encontrei notícias ou mesmo a mais vaga referência acerca deste fato, agora  facilmente comprovado por meio da descoberta das telas de Eckhout 
Não consegui ainda relacionar o homem retratado por Albert Eckhout  com o mandatário do reino do Nsoyo (que, como já disse, os primeiros indícios dão conta de ser tio da rainha Nzinga). Contudo o fato deste homem ter sido identificado com um nome português – D. Miguel de Castro - prática comum apenas entre membros da aristocraciada região (reinos do Kongo, Matamba, Ndongo, Nsoyo, etc) na qual Nzinga Mbandi era conhecida também como D. Ana De Souza e seu irmão Nkanga a Lukeni  como D. Garcia II , é evidente que algum título importante neste contexto o embaixador retratado por Eckhout  possuía, nada impedindo que ele pudesse ser realmente o mandatário do Nsoyo. Falta também estabelecer, o que a informação inicial (da qual não possuo a fonte primária) não esclarece, se foi  mesmo verdade que o navio ‘As Armas de Dortrecht’ seguiu para Amsterdam, para onde D. Miguel de Castro teria seguido a fim de negociar interesses comerciais e militares da rainha Nzinga Mbandi e de seu irmão, Nkanga a Lukeni , com os – com certeza – acachapados executivos da Companhia das Índias Ocidentais. O que qualquer um de nós não daria para encontrar dados mais detalhados, um diário de bordo, uma notícia fortuita qualquer de negros africanos andando pelas ruas de Amsterdam do século 17, algo emocionante sobre esta insuperável aventura histórica, sem precedentes conhecidos?

Contudo, desmontando em parte este meu pessimismo investigativo, Rapahel Crespoum amigo do facebook me escreve agora mesmo, num comentário surpreendente: Trata-se do retrato de um enviado do Rei do Congo, na categoria de embaixador, com a missão de rogar a Maurício de Nassau que interviesse no sentido de dirimir divergências que mantinha com o Régulo de Sonho, na embocadura do Congo". Enviaram para tanto o Rei do Congo, Garcia II (também referido como Garcia IV), e o Soba de Sonho, Daniel Silva, também chamado pitorescamente Conde de Sonho, aproximadamente na mesma época, seus delegados com presentes e mensagens quer  para Nassau, quer para o Príncipe de Orange, quer para a direção da Companhia das Índias. Há citações de que trouxeram os emissários do Rei um presente de 600 escravos, sendo uma terça parte para o Príncipe, outra para o Conde de Nassau e uma terceira parte para a Companhia das Índias. Os emissários do Régulo de Sonho, chegados ao Recife em dezembro de 1642, eram três, e seus nomes ficaram registrados: Miguel de Castro, Bastião Manduba e Antônio Fernandes cada qual com um criado.

Trouxeram de presente seis escravos. Dos três, o primeiro seguiu para Holanda e os outros regressaram à África, em maio de 1643. Quanto aos enviados do Rei não há relatos que tenham ido à Holanda. Sobre sua chegada ao Recife existe referência à data de 12 de Maio de 1643 – (“Albert Eckhout – Pintor de Maurício de Nassau no Brasil 1637/1644″ – Clarival do PradoValladares – Livroarte Editora)
E isto sem falar que esta época é exatamente o período onde floresce o Kilombo de Palmares no mesmo Recife onde esta inusitada embaixada africana aportou. Conterrâneos já se sabe, mas haveriam parentes do embaixador D. Miguel de Castro em Palmares? Sabe-se já com alguma certeza que os escravos de Palmares em sua maioria não eram escravos comuns, mas prisioneiros de guerra, alguns até aristocratas como presumo que fossem as famílias e a dinastia de líderes denominados todos – como Nkanga a Lukeni de … ‘Nkanga a Nzumbi’. E imaginem o meu prazer, quase infantil em ter podido comprovar, pelo menos parcialmente esta história eletrizante que tão pouca gente tinha ouvido falar? Orgulhoso que estou – com toda razão, convenhamos – como detetive precursor, só espero que os historiadores profissionais ou amadores que vão a partir de agora seguir as pistas deste furo de reportagem histórico (na acepção da palavra) não se esqueçam de citar as fontes que os precederam (Roberto Correia, o historiador português que citou em seu blog a viagem e o nome do navio, o pintor Albert Eckhout que retratou o embaixador com seus ‘servos’ e principalmente eu Spírito Santo que futriqueiro de nascença que sou, segui as duas pistas até conseguir estabelecer os incríveis vínculos entre as duas informações a ponto de comprová-las (sem esquecer do velho folclorista Câmara Cascudo, é claro, o primeiro a levantar esta lebre da Rainha Jinga, pelo menos para mim… e ao moço Raphael Crespo que tantos detalhes mais acrescentou a esta  formidável  história).

Spírito Santo
Abril 2011